Lula e Biden têm rejeição entre evangélicos como desafio comum, em fenômeno que se expande pela América Latina
Já presente no Brasil e nos Estados Unidos, politização da fé começa a crescer em países vizinhos; no continente, o segmento representava 3,5% da população em 1995; em 2021, já eram 19,7% Um alinhamento do segmento evangélico com a direita radical tem colocado em situações políticas semelhantes os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos Estados Unidos, Joe Biden. Por lá, o americano é rejeitado por 86% dos brancos evangélicos, ante reprovação de 62% na análise geral da população, segundo pesquisa do Pew Research Center.
Aqui, a pesquisa Quaest mais recente, que foi a campo em fevereiro, mostrou que o trabalho de Lula tinha 62% de reprovação entre os religiosos, 16 pontos a mais do que a média total. O resultado alertou o governo brasileiro para a necessidade de atrair essa fatia da população, e esta semana o Planalto lançará a campanha Fé no Brasil, que, com direito a menção religiosa no nome, concentra-se em divulgar feitos da gestão petista.
Pautas de costumes, como legalização do aborto e descriminalização das drogas, são as que mais mobilizam os evangélicos lá e cá. Quando Lula comandou o Brasil entre 2003 e 2010, os institutos sequer incluíam o recorte religioso nas pesquisas de avaliação do governo. Cada vez mais relevantes — em números e no grau de engajamento político —, hoje evangélicos são um desafio maior para o petista do que naquele primeiro momento, segundo pesquisadores.
Fenômeno crescente
Na América Latina, Lula também não está só: a ascensão evangélica e a simbiose com a política é um fenômeno crescente. Segundo dados do Latinobarómetro, o percentual de pessoas que se identificam como adeptas dos diferentes segmentos evangélicos passou de 3,5% em 1995 para 19,7% em 2021 no agregado dos países. Um crescimento que, junto com o aumento dos que se declaram sem religião, vem reduzindo o ainda presente domínio católico.
Na avaliação de especialistas, isso faz com que, cada vez mais, a instrumentalização da fé seja usada em campanhas eleitorais como acessório de algo maior: a cooperação internacional da extrema direita.
Fé em números
Junto com o crescimento desses grupos, em boa parte vemos um alinhamento desses evangélicos com uma política de direita radical. E isso existe por conta de uma influência muito forte dos evangélicos dos Estados Unidos, que têm uma teologia de direita radical e uma ação política que vêm de muito mais tempo, uma aliança com políticos e facções do Partido Republicano — aponta o cientista político Vinicius do Valle, diretor do Observatório Evangélico.
A despeito de os dados detalhados de segmentos religiosos do Censo 2022 ainda não terem sido divulgados, o Datafolha estima que os evangélicos sejam mais de 30% do país.
Quando Lula assumiu, em 2003, eram menos de 20%.
Tentativa de aproximação: Após lançar campanha que acena a evangélicos, Lula volta a mirar segmento com discurso em tom religioso
CEO do Ipec e do antigo Ibope, Márcia Cavallari diz que o recorte religioso começou a ser verificado nas eleições presidenciais de 2014 em função do debate que surgiu na campanha sobre o aborto:
— De lá para cá, a religião foi se tornando uma variável cada vez mais relevante na análise dos resultados das pesquisas eleitorais e de opinião.
Bernardo Mello Franco: Lula faz discurso de pastor e recicla slogan de Garotinho para atrair evangélicos
Além da mudança quantitativa no Brasil, os evangélicos passaram a intensificar o processo de organização, destaca Vinicius do Valle, que também é autor do livro “Entre a Religião e o Lulismo”.
Perceberam que têm força política e foram, aos poucos, aprimorando essa atuação. Mesmo com divergências internas, conseguiram passar uma imagem de coesão a nível nacional.
— O PT estava acostumado com um mundo evangélico menor e menos articulado nos primeiros governos. Está tomando agora um vareio, apanhando muito por não conseguir fazer essa política — avalia Valle.
A estratégia petista para ganhar a confiança costuma se concentrar nas políticas públicas tradicionais da área social, explica o pesquisador.
— O evangélico é evangélico, mas também é morador de periferia, pobre, mulher. Políticas públicas que atinjam esse público por essas vias, sem ser pela questão religiosa, tendem a impactar essa parcela a aprovar mais o governo — aponta. — Mas só isso não vai resolver, e é isso que o PT não entendeu.
Coordenadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser), Ana Carolina Evangelista considera positivo o movimento de focar em políticas públicas, como a campanha Fé no Brasil. Nessa linha, destaca que é perigoso achar que o evangélico se porta na opinião pública apenas de acordo com a fé — ou que o conservadorismo religioso está apartado de um movimento político maior, do qual a religião é menos um vetor e mais um instrumento.
Ela pondera, no entanto, que o Brasil de agora é diferente do “país católico” que Lula assumiu em 2003. Há novos atores, diz, que estão nas comunidades e atuam como comunicadores, geralmente pautados por valores conservadores.
— Existem outros intermediários locais que estão não só nas igrejas, mas nas comunidades, em espaços onde congregam e constroem a política no território. São comunicadores, filtros de comunicação entre o governo e a ponta — avalia. — Esses comunicadores estão radicalizados.
Existe uma campanha sistemática, sobretudo na arena evangélica, de que a esquerda é um problema no campo dos valores, mas também na economia. Pesquisa recente do Iser focada em mulheres evangélicas, com resultados prévios divulgados pelo Valor Econômico, elencou alguns focos de resistência ao governo Lula.
Na economia, apesar da melhora dos índices tradicionais, há uma percepção de que a vida não melhorou. Elas também relataram a sensação de que os evangélicos são perseguidos e o medo da violência, além de demonstrarem propensão a se informar por grupos de mensagens ligados à igreja.
Nos Estados Unidos, a diferença costuma ser marcante entre a avaliação geral dos presidentes e as registradas em segmentos religiosos — sobretudo quando é feito o recorte “brancos evangélicos”, parcela conservadora, ou “protestantes negros”, fiéis ao Partido Democrata.
Em levantamento de março do Pew Center, Biden tem reprovação total de 62%, mas o número salta para 86% na leitura por brancos evangélicos e é de apenas 32% nos protestantes negros.
Já na América Latina, além do crescimento geral, alguns países se destacam.
Nos da América Central, esses fiéis estão praticamente empatados com os católicos em locais como Guatemala e El Salvador. Entre os da América do Sul, chamam atenção, junto com o Brasil, nações como a Bolívia e a Colômbia. Segundo o Latinobarómetro, os bolivianos evangélicos eram 9,3% em 1996 e hoje são 19%, enquanto os colombianos passaram de 4,9% para 17,8%.
Uso da fé
Os dois países vivenciaram episódios políticos que expuseram o uso político da fé. Na Bolívia, Jeanine Áñez evocou a religião quando adentrou o palácio presidencial em 2019 e disse que a Bíblia “estava de volta”, em contraponto ao ex-presidente Evo Morales.
Depois, ela seria presa e condenada a dez anos de prisão por tentativa de golpe de Estado.
— Temos indícios de que os evangélicos foram importantes para a campanha de Milei na Argentina, apesar de o número de evangélicos no país ser menor, e vários dados que corroboram atuação na Colômbia, seja na votação sobre o acordo com as Farc ou nas eleições — diz Vinicius do Valle.